terça-feira, 29 de março de 2011

é memória que não tem fim


quando escrevo
esqueço de tudo o que já vivi

esqueço qual era a cor azul do tênis que usei
em meu primeiro dia de aula
e o quanto me preocupei com o azul desse azul,
e faço questão de não lembrar o nome
de nenhum dos tão infinitos professores

esqueço o cheiro do perfume doce em excesso
da garota do primeiro beijo
e do quão geladas estavam minhas mãos ali
naquela explosão de poros se abrindo
com gosto de pele

esqueço de tudo o que aprendi sobre poesia,
sobre métrica e rima
esqueço de Drummond, de Bandeira e de Gullar
e deixo de lado todos os versos Beatniks
esqueço de Rimbaud e Whitman,
e Pessoa é só mais uma pessoa

esqueço qual foi a primeira vez que me emocionei com um sorriso,
e a primeira transa também não faz parte de mim quando escrevo

esqueço dos sons de meus brinquedos
quando sem querer os quebrava nos quintais de minha infância
e tampouco me lembro de quando pela primeira vez
pensei sobre a morte

não lembro do arroz queimado que fiz aos 17 anos
nem da primeira insônia angustiada de um amor reticente

esqueço do dia em que pela primeira vez
pus os pés em um buteco e pedi uma cerveja
e a amnésia já esquecida do primeiro porre
já havia ficado ali pra nunca mais me lembrar

mas na verdade tudo que se esquece
é esquecido pois volta sempre novo
para logo em seguida, como chuva imediata
se esquecer novamente

a escrita nasce pra ser esquecida
o poema não é feito para se saber de cor,
e quando se sabe de cor, cada declamação é sempre a primeira
e a última

o poema deve ficar ali
na sensação eterna do instante,
congelado e capturado,
sugado como bebê suga o seio materno
e depois dissipado: poesia vento no rosto
e só

no momento em que escrevo esses versos
esqueço sobre o que estou escrevendo
esqueço de mim
e esqueço até que essa poesia
deveria ter de fato
um fim

quarta-feira, 16 de março de 2011

bolinha de papel


pegou um papel

cuspiu o fundo da alma ali
mobilizando com força que contorce suspirante
todo a orla corporal


é,
corpo é coisa oceânica demais
tilinta tanto silêncio que alguns sons das profundezas
chegam a dançar vibrantes na janela,
sabe como é,
não há controle nas águas do mar


mas
depois do cuspe
amassou o papel assim, despretencioso,
como quem dança pelado
no escuro solitário da sala vazia
(quem não ritualiza, não se tateia de verdade no pulsar das veias,
só se engana, ou coisa pior)


passou infindáveis minutos, quase póstumos,
contemplando tal objeto de experimentação poética


mas acabou
jogando-o pela janela


a arte é assim,
é perene, dura enquanto durar,
melhor alçar voo do último andar do prédio,

respirar a queda, uma ascensão às avessas

mas e aí?
chegará o dia
em que o escarro sairá do papel?

sexta-feira, 11 de março de 2011

quero


e nesse
bacanal de sensações
não sentidas,
deliro doces verbos imaginários
até
alongar-me fome

quero alimento
eterno isqueiro do cigarro da paixão
que acende a alma
e
enfumaça a visão
para
enxergar melhor,
para encharcar o tédio, para
quebrar as vidraças da vizinha
e ver as crianças correndo
sorrindo em frenesi

quero delírio sincero,
sorriso de gozo
nas mais macias sutilezas,
amanhecer
o dia
que pulsa sempre
entre minhas pálpebras
e me faz
alucinar

todo
dia

quarta-feira, 2 de março de 2011

posição política


a poesia
enquanto função social
deve se esquecer de ter função,
borrar as cores sociais,
esquizofrenizar o que já é nonsense,
ignorar tudo que faça algum sentido,
imprimir nos poros da vida
apenas rugosidades,
nuances desapercebidas de contrasenso
que se irrompem
onde não devem,
revolucionam microssegundos de tempo
cavando ali furos atemporais

a poesia
deve ser buraco negro antropofágico
que tudo deglute
afim de sorver
saborescências inéditas
desimpregnadas de tanto mofo
dum passado transviado do avesso
que é assassinado
a pauladas de gemidos estridentes-sexuais:
poesia-tesão, a estaca zero da vida

a poesia
não tem função
não há função na poesia
mas na moça virgem embriagada do recato paterno
descarrila o trem do pecado
e engravida o mundo
com um sutil veneno-bomba-relógio
que explode com doce transgressão
a família universal de todas as eras
e isso
nunca foi função poética,
isso
é
trans
mutação
estética