sábado, 30 de agosto de 2008

Quinta-feira

Hoje eu sou mais velho que ontem quando aquela loucura do dia de quinta-feira me tornou menos digno de empatia e respeito. Agora só me resta olhar pra trás, derramar o leite, e mijar em cima dele (esse negócio de chorar já não faz mais a cabeça). Deve ficar uma cor pastosa, urina e leite. Bom, depende também do tipo do chão, aqui em casa é de azulejo cinza, tanto no quarto quanto na cozinha, quando eu cheguei aqui já era desse jeito e nunca pensamos em mudar. No frio a gente anda de meia, o azulejo fica gelado.

Eu tinha falado sobre estar mais velho, deve ser por ter acordado com o cheiro do vinho barato na língua e ter ficado por alguns minutos olhando minha cara no espelho, muitos detalhes pra uma face só. Isso de não fazer a barba é igual remela no olho, a gente tira pra ficar menos porra-loca (pelo menos esteticamente). Só que na rua ao verem minha remela me avisam, falam pra tirar, já a barba apenas olham, e pensam. Mas hoje não é mais quinta-feira e em fins de semana a remela acumulada tem mais qualidade. Ela pode ser uma forma de recuperar aquela empatia e respeito perdidos na quinta. Com uma remela que se impõe me sinto menos verde.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Eu

"Da cidade, que é corpo, sou alma"
- Danislau Também, em A Pele do Asfalto

Escrever em primeira pessoa é um projeto ousado
nada é mais difícil do que esboçar palavras sobre o eu.
Mas madrugadas hipnóticas são propícias ao desenvolvimento de tal projeto.
Música de fundo não falta
a consciência atinge tamanho nível de sensibilidade
que a atenção seletiva atinge a amplitude da cidade se unindo a ela
e deixa de existir apenas dentro do cubo de concreto.

Nunca o ser humano caótico
de uma metrópole decadente
se torna tão sensível quanto na madrugada.
Por isso o sexo, a embriaguez e a arte.
Produção incessante dessas três inerências do ser
que durante o dia são devoradas
por uma rotina maquinal calculada inconscientemente
e que a noite afloram para provar que ainda temos em nós
o espírito de unidade, a vontade humana de união
que de fato nos faz uma primeira pessoa.

O cotidiano engole a primeira pessoa
o eu se dissolve em vicissitudes
provocadas pelo tão famigerado capital
e enquanto isso nossos cubos de concreto
aguardam ansiosos pelas madrugadas
onde a solidão se faz presente
e a vontade de retorno ao uno
se faz inevitável.
De madrugada somos todos primeira pessoa
somos uma pessoa só.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Estranhamento

Deixo-me levar por uma grande palavra
que parece ser a contra-guia do espírito do tempo
não a vejo
não a toco
não é deus.
Somente a sinto como uma bela flor
que espanca.

Não me estranhe,
é possível sentir essa palavra
quando da vida se espera um vôo
que rasga cabeças para se fazer mostrar,
assim percebo que me fiz vivo
pois o outro me contempla
e acima de tudo me sente.

Na língua não vejo essa palavra
não é sonora nem tem cor.
Me vejo inerte
pois não há mais corpo
não há mais mundo
apenas há.

Ela não se traduzirá
mas caso o prazer da vida
venha da ácida contravenção
que escancara verdades inventadas,
deixe-se levar por essa palavra,
pois nosso caduco mundo
carece daquele vento
para uivar suas gélidas madrugadas
e estilhaçar suas vidraças.

Agora tenho cacos em minhas mãos.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Sobre estar com sono

Vigília versus sono.
Nadar de braçadas em um mar onírico
substancialmente denso
para recriar releituras
feitas em vigília.

Acordar dormindo
e escalar aquele imenso monte
daquela inebriante paisagem
que se mostra desfiada em cores
dentro do que se chama fechar os olhos.

Fluir fervoroso como fogo.
A consciência imersa
nesse eterno iniciar em chamas
com pensamentos suspensos em um varal
no quintal da loucura.

Dormir com o pincel
das cores inconscientes
para lidar com o outro
pintando no espelho das relações
a cor dos sonhos.
A existência então se projeta.